Orwell além d’A Revolução dos Bichos

Birmânia, trabalhadores, socialismo e pobreza

Giovanna Nardini
5 min readApr 30, 2020

É normal que autores tenham um ou dois livros que se destaquem e virem quase um sinônimo de seus nomes. No caso de George Orwell, 1984 (1949) e A Revolução dos Bichos (1945) são esses livros, por motivos totalmente compreensíveis — quem não se identifica com a sociedade do Grande Irmão ou não consegue relacionar o porco Napoleão a mais de um político?

Mas Orwell tem uma produção ampla composta por livros e muitos artigos, alguns dos quais foram traduzidos e publicados em português. Aqui vou falar um pouco sobre três desses livros e por que os considero obras interessantes, mesmo noventa anos depois de serem publicados.

Para entender onde esses livros se encaixam, é preciso conhecer alguns pontos da conturbada e polêmica biografia de Eric Arthur Blair, que viria a ser conhecido pelo seu psudônimo, George Orwell. Nascido na Índia quando ainda era uma colônia britânica, em 1906, e criado na Inglaterra, Orwell ainda jovem se destacou e ganhou um bolsa de estudo para uma escola de elite, onde foi aluno de Aldous Huxley (autor de Admirável Mundo Novo). Terminada a escola, Orwell trabalhou para a polícia imperial britânica — como seu pai havia feito — , na Birmânia (atualmente chamada Myanmar).

Dessa experiência nasce o livro Dias na Birmânia (1934). Nele, o autor mescla a sua própria experiência a uma história ficcional, com um forte tom crítico à atuação do governo inglês no território birmanês, além de destacar as peculiaridades do local — um país na ásia tropical sendo observado por um menino do interior inglês.

No livro, o protagonista John Flory é funcionário de uma madeireira inglesa na Birmânia, e frequenta um clube onde apenas brancos são admitidos. Apesar da sua amizade com os locais, em especial o médico Dr. Veraswami, é aceito no clube, onde sempre ouve críticas sobre seu contato com os birmaneses. Personagem importante também é U Po Kyin, nativo, que construiu sua carreira com base na corrupção.

Como magistrado, seus métodos eram simples. Mesmo pelo maior dos subornos, ele jamais vendia a decisão de um caso, pois sabia que um magistrado que emite julgamentos errados acaba sendo descoberto mais cedo ou mais tarde. Seu modo de agir, muito mais seguro, era aceitar suborno dos dois lados e, depois, resolver o caso estritamente de acordo com a lei. O que ainda lhe valia uma proveitosa reputação de imparcialidade.

Dias na Birmânia é ainda uma crítica ao imperialismo inglês, recorrente na obra do autor. Sobre a atuação dos ingleses, John Fleury eventualmente afirma:

“Claro, não vou negar”, respondeu Fleury, “que sob alguns aspectos modernizamos esse país. E nem poderia ser de outro modo. Na verdade, antes de irmos embora teremos destruído toda a cultura nacional birmanesa. Mas não civilizamos ninguém, só esfregamos a nossa sujeira na cara do povo daqui. Aonde vai levar, essa marcha do progresso moderno, como o senhor diz? No máximo, vai chegar à nossa bem conhecida porcaria, feita de gramofones e gorros de feltro”.

D e volta à Inglaterra em 1927, Orwell vai viver algum tempo entre pobres e desempregados, e suas experiências nesse período compõem parte do livro Na pior em Paris e Londres (1933). A outra parte, como é de se esperar, é sobre o tempo em que morou em Paris, onde começou a ter um trabalho mais ou menos firme como jornalista, mas acaba tendo todo o seu dinheiro furtado e volta a viver entre os pobres (dessa vez sem escolha), fazendo todo o tipo de trabalho e até vendendo suas próprias roupas para poder comer.

Embora tenha sido publicado depois, este é o livro que fez o nome de Orwell ficar conhecido na época. Quando foi publicado, o autor ainda era ligado ao socialismo e buscava denunciar a pobreza e a vida nas grandes cidades. Com forte tom jornalístico, Orwell narra como era a vida dos mendigos ingleses, sempre de albergue em albergue — era proibido pedir esmolas e dormir duas noites no mesmo albergue, portanto eles precisavam passar o dia a procura de moedas pelas ruas, até chegar ao albergue da próxima noite, e assim sucessivamente.

Se perguntarem a um homem rico que seja intelectualmente honesto sobre a melhoria das condições de trabalho, ele dirá algo assim: “Sabemos que a pobreza é desagradável; na verdade, uma vez que é tão remota, gostamos um pouco de nos angustiar com a ideia da sua desagradabilidade. Mas não esperem que façamos alguma coisa a respeito dela. (…) Então, queridos irmãos, uma vez que vocês devem evidentemente suar para pagar nossas viagens à Itália, suem e que se dane.”

Também sobre sua experiência entre os trabalhadores é O Caminho para Wigan Pier (1937), dividido entre documentário e análise, basicamente dois livros diferentes. Desta vez, não são os trabalhadores urbanos retratados, mas os mineiradores de carvão do norte da Inglaterra. O retrato dos mineradores é feito depois que o autor havia passado dois meses junto deles, e ficado chocado com a vida paupérrima e as péssimas condições de trabalho que levavam, fazendo um trabalho do qual o país inteiro dependia.

Não se consegue esquecer esse espetáculo depois que o vemos — aquela fileira de figuras curvadas, ajoelhadas, inteiramente cobertas de fuligem negra, enfiando suas enormes pás embaixo do carvão com uma força e uma velocidade estupendas. Seu turno de trabalho dura sete horas e meia — teoricamente sem pausas, porque não há intervalo algum.

A parte analítica traz uma crítica à classe média e ao socialismo inglês, com o qual Orwell teve uma longa e complexa história. Quando este livro foi publicado, Orwell já havia saído do partido socialista e fazia críticas (ainda mais) ferrenhas sobre ele. Segundo o autor, o “socialismo de classe média” da Inglaterra nunca faria sentido, pois a classe média — da qual ele próprio fizera parte — era incapaz de compreender a realidade dos pobres e trabalhadores. Continuando com as críticas ao sistema imperialista inglês, afirma que:

A alternativa [ao sistema imperial] é jogar fora o império e reduzir a Inglaterra a uma pequena ilha gélida e sem importância, onde todos nós teríamos que trabalhar muito duro e sobreviver, basicamente, à base de arenque com batatas. Essa é a última coisa que qualquer esquerdista deseja.

A biografia de Orwell é composta de muitos outros elementos que foram deixados de fora aqui. Sua atuação no Partido Socialista inglês, seguida por uma vida de pontos de vista reacionários é um deles, a luta na Guerra Civil Espanhola, assim como outros livros e ensaios. Não pretendo, obviamente, tentar esgotar esse assunto aqui. Apenas fazer uma reflexão sobre a importância desses livros que colocam o povo pobre e trabalhador como personagens principais e trazem a tona a mesquinhez humana, a corrupção e as hipocrisias da classe média.

Todos os livros citados aqui têm versões em português publicadas pela Companhia das Letras, que foram as edições consultadas e de onde foram diradas as citações.

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