O Morro dos Ventos Uivantes e a insanidade na vida contemporânea

Giovanna Nardini
4 min readNov 6, 2020

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Atenção: este texto contém muitas divagações.

Casa na floresta — como eu imagino Wuthering Heights.
Na minha cabeça, Wuthering Heights é assim.

O Morro dos Ventos Uivantes é um livro cuja presença esteve rondando a minha vida há muitos anos. Desde a música da Kate Bush, filmes, citações, pessoas me falando sobre ele de tempos em tempos, me lembrando que ele estava ali. Por algum motivo, achava que seria uma leitura cansativa e maçante — afinal, um romance escrito em 1847 geralmente passa essa impressão em leitores desavisados. Passei um tempão enrolando pra ler, mas com a certeza de que leria algum dia. Não lembro do momento exato, mas há alguns meses comprei o tal livro, uma edição bonitinha em capa dura e coisa e tal.

Livros escritos por mulheres no século XIX já me causam admiração apenas pela audácia de escrever um texto memorável numa época em que se pensava que elas não podiam dizer, pensar, escrever nada de valor. As irmãs Bronte, Jane Austen, Mary Shelley, transgredindo regras pelo simples fato de registrarem suas próprias ideias e pensamentos. Virginia Woolf escreveu sobre isso e eu nunca esqueci. Elas estavam escrevendo os clássicos da literatura ocidental, sem condições de expor suas ideias em voz alta, às vezes precisando de um pseudônimo masculino (como foi o caso de Emily), em casas úmidas e escuras, à luz de uma vela que iluminava mais ou menos, correndo toda uma série de riscos — humilhação, ridicularização, por serem mulheres pensando. Audaciosas. Pensar nisso me dá um arrepio.

Voltando ao livro, a minha ideia de que seria uma leitura chatinha não podia estar mais errada. Um resuminho bem tosco: se trata da história de Heathcliff, um garoto adotado por uma família rica e que se apaixona por sua irmã de criação, Catherine — contudo, não podem ficar juntos. A família deles e outra família moram em fazendas próximas, num local muito afastado, no interior da Inglaterra. É justamente essas duas casas e o ambiente (escuro, úmido, vazio) que dá o tom da narrativa. Sabemos da história das pessoas que as habitam por três gerações, até a morte de Heathcliff.

Além de ser uma leitura super fluida, a história é surpreendentemente perturbadora. Amor incondicional e cego, uma série de abusos psicológicos de todo o tipo, paranoias, loucura, insanidade — uma história de amor que de amor, não tem nada. Heathcliff, odiado e maltratado quando criança, com o tempo se transforma em uma pessoa amarga, cruel, assim como Catherine, uma pessoa naturalmente pouco empática. Todas as pessoas ao redor sofrem com o comportamento destrutivo deles e ambos são pouco a pouco consumidos pela loucura, fruto tanto do amor impossível entre os dois, quanto da própria organização espacial do lugar onde vivem.

Me fez pensar muito em por que os clássicos são clássicos, o que tem nessas histórias que faz com que elas passem mais de 150 anos sendo lidas, interpretadas, cantadas? Pra mim, em O Morro dos Ventos Uivantes essa resposta está na ideia da insanidade que perpassa toda a história. A insanidade de adotar uma criança perdida, de se viver num ambiente tão declaradamente hostil, de se apaixonar, de ignorar essa paixão, de tentar ferir a alma de alguém até depois de sua morte. Parece um drama exagerado, mas em quantos momentos da vida não nos sentimos no limite da sanidade, na exata linha que separa um lado e outro? A vida contemporânea faz com que essa suposta sanidade seja posta a prova o tempo todo, como uma prova de resistência onde estamos à beira do precipício, e o que espera do outro lado é a loucura.

Loucura. Palavra que também ela é posta a prova o tempo todo, com significados múltiplos. “Fiquei muito louco”, alguém pode dizer ao se referir a um momento bom. “Você é louca”, frase que toda mulher está cansada de ouvir. “Isso é coisa de doido”, “Tá maluco?”. A loucura implica uma série de inadequações sociais, estigmas, a história tá aí pra provar o quanto já aconteceu com pessoas consideradas loucas. Mas tem também um não-sei-o-que de liberdade, estar livre de muitas imposições, poder viver do jeito que se pensa. Penso sempre se as pessoas que “são loucas”, se é que se pode dizer isso, têm consciência disso ou se esse rótulo é sempre colocado por outras pessoas. Se fazer o que se quer há de ser a lei, onde se separam liberdade e insanidade?

Talvez seja por isso que esse livro me encantou tão inesperadamente, ou talvez eu só goste de histórias bem dramáticas.

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